"Não sabem nada as pessoas que oram a deuses que não podem salvá-las, pessoas que fazem procissões, carregando as suas imagens de madeira". (Isaías 45:20)
UMA ENTREVISTA COM DEUS
O sujeito puxou a cadeira e sentou-se. Era uma casa humilde e praticamente vazia. A cadeirinha de madeira e a mesa ficavam perto da janela. O outro sentou-se com seu copo de vinho na mão.
-Então você é Deus? - perguntou o repórter ao que tomava o vinho.
-É como vocês me chamam. Deus.
-Sei. Fale aqui mais perto porque as pilhas estão meio fracas. Você fez o mundo em sete dias?
-Não, em seis. No sétimo eu descansei.
-Claro. Mas e aquela história da luz tão forte que impedia que as pessoas vissem o rosto de Deus... - antes que ele acabasse uma luz cegante invadiu tudo.
O repórter cobriu os olhos com rapidez, mas a luz só durou uns segundos.
-O suficiente para cegar, não? - disse Deus.
-Sim, podia ter avisado! - reclamou esfregando os olhos - Mas você não usa a luz sempre por quê?
-Porque enche o saco.
-Fale aqui mais perto. Por que você fez a raça humana?
-Ah, isso é uma pergunta filha da mãe! Eu fiz esse pessoalzinho aí só para me divertir, e vocês sabem disso! Eu adoro essa coisa de criar humanos e depois tentá-los, fazê-los sofrer, matá-los, é uma terapia. Maria diz que sou louco. Mas, afinal, quem não é?
-Maria?
-Maria, claro.
-A santa?
-É como vocês a chamam, né? Maria se diverte com essa história.
-Ela é sua mulher?
-A gente se gosta, saímos juntos, mas nada de papel, testemunhas, nada disso. Quando ela engravidou quase nos separamos. Aí ela acabou casando com aquele José, que assumiu o garoto. Aliás, garoto problemático, héin!
-Jesus Cristo?
-Esse mesmo. Cheio de si, se achando o grande messias. Acho que tinha algum complexo, sei lá. Eu sabia que aquela história de ser o cordeiro de Deus não ia dar em boa coisa, o garoto tinha aquele jeito de suicida, só podia dar no que deu. Depois disso Maria voltou para mim.
-Então ele não era o filho predileto que você deu por amor?
-Que filho predileto o quê! Foi um filho não planejado que acabou dando muito trabalho para mim e para ela. Mas já superamos isso. Só que como era meu filho, ele tinha certos poderes de cura e de milagres que usou para impressionar vocês humanos. E até hoje vocês alimentam essa história, que Deus o tenha... quero dizer, que Eu o tenha.
-Muito interessante. Isso aí no copo é vinho?
-É sim, quer provar?
-Um pouco.
-Pegue. Tome do seu copo.
-No meu copo tem água.
-Já não tem mais.
-Ora! Água em vinho! Isso não é um truque de Jesus?
-E você acha que ele herdou isso de quem? Papai Noel?
-Sei - o repórter bebeu - É uma delícia.
-Eu sou bom no que faço, modéstia à parte.
-Maria está em casa?
-Ela saiu cedo hoje. Foi olhar de perto uma vidraça onde fizeram uma caricatura dela. Maria é vaidosa demais! Ela não gostou nada dessa história. Disse-me que vai anotar num caderninho os nomes de todos que lá estiverem e dar um problema para cada um para ver se essa gente arruma o que fazer.
-E Adão e Eva?
-O que é que tem?
-Como foi aquela história no paraíso?
-Ah, eu me diverti bastante. Fiz os dois lá, peladões, à toa, e coloquei a serpente, o fruto proibido, armei o circo de modo que desse para ter alguma graça. Depois fiquei lá olhando os dois sucumbirem. Eu sou sádico, não é não? Eu podia ter dado poder a eles para não sucumbirem, para continuarem eternamente no Éden, mas eu sou implicante, cara! Quando fiz as regras de não poderem comer aquele fruto, eu já sabia o que aconteceria, é claro. Foi demais! Aquela serpente eu transformei num advogado. Um dos melhores que estão aí hoje, trabalha para o Fernandinho.
-Quem é?
-Ah, não! Nada de nomes.
-E o casal?
-O casal encheu meu saco. Joguei para fora do paraíso. Eles eram muito chatos, não faziam nada que prestasse, viviam lá medrosos, se cobrindo com aquelas folhinhas.
-Procure falar mais perto, aqui.
-O problema é com as pilhas? Então, que suas pilhas não acabem mais. Pronto.
-Você as recarregou?
-Eu as tornei eternas. Não se preocupe mais com elas.
-Obrigado. Quantos anos você tem?
-Não tenho. Nenhum. Esse tempinho de droga que vocês têm, eu não tenho.
-Você nasceu? Como tudo começou?
-Aí já são outros quinhentos, porque quando vocês me inventaram, nunca disseram nem como, nem quando, nem por quê.
-Nós inventamos?
-Vocês. Vocês inventaram um imbecil à toa, que se diverte olhando suas cretinas vidas vazias e lhes faz alguns favores em troca de algumas humilhações e orações. Este sou eu.
-Então você não é Deus!
-Está vendo? Malditos mortais. Não agüentam a verdade. Quando falo a verdade sou tudo, menos Deus. Agora, se sou o que vocês querem que eu seja, sou Pai, Salvador, Senhor, e sei lá mais o quê. Vamos parar com essa conversa fiada por aqui. Eu já enchi.
-Eu também.
-Então caia fora.
-Mas não vou devolver as pilhas.
Priscilla Pereira Nunes