A RÃ PADECEU
-Não sei o que fazer, Mirtes. Isso vai nos trazer um monte de problemas. Com ela nós podíamos atravessar as águas do rio no impulso, mas agora eu acho que não temos saída. Vamos ter que esperar outro alguém que possa fazer tudo de novo.
Lá estavam Jodie, o cavalo, e Mirtes, a galinha. Eles conversavam a sós, na sala de aulas do teatro da cidade.
Aconteceu, porém, que Lira, a cobra, escutara a conversa de Jodie e Mirtes, atrás da porta...
Lira reuniu todos os bichos que conseguiu contactar, num auditório muito grande que ficava no mesmo teatro. Ela não disse do que se tratava, mas disse que era de interesse público e que o mundo mudaria daquele momento em diante.
A bicharada compareceu.
Na hora marcada, Lira subiu ao palco e, inflamada de nervosismo, começou a falar:
-Meus irmãos!
-Irmãos? - estranhou a velha leoa Janete.
-Sim, meus irmãos. Depois do que lhes contar, vocês entenderão que somos todos irmãos no amor divino da Rã!
-Do que está falando, Lira? - insistiu Janete.
-A Rã padeceu, meus irmãos! A Rã padeceu!
-Que rã?
-A gloriosa Rã que veio para nos salvar! A Rã que amou os bichos de tal maneira que padeceu por todos nós!
Um falatório confuso começou a surgir no meio dos bichos, mas Lira continuou:
-Meus irmãos, a Rã veio trazer o amor, a verdade, a liberdade, a sopa de rã..., quero dizer, o alimento espiritual de que precisávamos!
-Lira, não sabemos do que você está falando exatamente. Será que pode ser mais clara? - perguntou Douglas, o morcego.
-Então prestem atenção: eu estou dizendo que a Rã padeceu por nós. E morreu. Agora teremos de esperar por alguém que possa fazer tudo de novo, vamos ter que esperar que o próximo enviado venha continuar toda a obra que a Rã iniciou.
-Mas quem era essa Rã que nós não conhecíamos? - voltou a falar Janete.
-Obviamente que não conheciam, pois Jodie e Mirtes esconderam-na de nós. Eles não queriam que tomássemos conhecimento da salvadora da humanidade, pois eles são céticos e incrédulos. Torturaram a Rã, fazendo-a padecer e ela morreu. Façamos justiça à nossa redentora! Adoremos a Rã em nosso íntimo e vamos rezar para ela todos os dias. Em breve eu arrumarei um lugar mais apropriado para nos juntarmos e adorarmos a grande Rã.
-E o que vamos fazer com aquele cavalo do Jodie e aquela galinha da Mirtes? - perguntou Laurence, um camelo.
-Eles têm que pagar pelo terrível pecado que cometeram - finalizou Lira.
O RANZISMO
Os bichos se reuniam todas as semanas para adorar a Rã que padeceu. Lira escreveu um livro grosso, ao qual chamou "sagrado", onde contava toda a história da Salvadora da humanidade. Dizia que o livro sagrado havia sido inspirado pela própria Rã e por isso não era um livro comum, mas escrito pela Rã através dela, a cobra Lira. Estava escrito que a Rã padeceu para salvar a todos os bichos, que a Rã fora enviada para libertar o mundo dos pecados. A bicharada que se reunia no "templo da Rã" era chamada de Ranzista e Lira era a fundadora do Ranzismo.
Muitos bichos doentes iam até lá implorar que a Grande Rã os curasse, outros apenas iam para agradecer as graças alcançadas e a maior parte ia pedir bobagens que satisfizessem seus caprichos bichais como arrumar namorado, ficar rico, conseguir uma casa de dois pavimentos, ser feliz mesmo sendo um bicho, trazer o bicho amado em três dias...
Alguns pedidos eram realizados, outros não, mas a fé é que importava.
Construíram uma grande estátua da Rã padecendo e sofrendo, e a colocaram num altar.
Dizia-se que com a ajuda da Rã era possível atravessar o rio sobre as águas. Lira repetia isso o tempo todo, pois ouvira algo assim da boca de Jodie. Dizia-se que um dia a Grande Rã voltaria e recompensaria a todos que lhe foram fiéis e que lhe tivessem adorado direitinho...
E prosseguia assim a vida na cidade.
O GOLFINHO BRUNO
Até que um dia apareceu um golfinho, o Bruno, que começou a criar uma certa polêmica...
-Mas então você não acredita no poder da Rã?! - escandalizou-se Rosana, uma vaca.
-Escute, como pode ser tão boa esta rã de vocês se ela não realiza todos os pedidos que vocês fazem? Ela tem preferência por um e por outro? Ela sorteia os felizardos da semana?
-Claro que não, seu ateu! A vontade da Grande Rã está acima da nossa! Ela sabe o que deve e o que não deve realizar!
-Quer dizer que aquele coelho, filho da dona Maria Coelha, que morreu anteontem, mesmo com toda a cidade fazendo orações para ele se curar, era um dos escolhidos pela vontade da rã? Essa rã é muito egocêntrica, você não acha não?
-Quanta heresia!
-Vamos ser realistas, Rosana! Que santidade é essa que vocês precisam chantagear a tal rã para serem recompensados? Vocês têm que bajulá-la, implorar coisas, dar outras em troca, senão não conseguem o que querem! Se fosse um produto comercial, eu entenderia. Mas cadê a santidade disso?
-Não quero mais falar com você! - a vaca deu as costas e foi embora muito irritada.
A VERDADE DESCOBERTA
Bruno esperou anoitecer e entrou escondido no templo da Rã. Lá mesmo havia uma prisão onde Lira trancafiara Jodie e Mirtes. Os dois estavam muito maltratados. Bruno encontrou o caminho livre até eles, pois Lira estava no meio do templo fazendo um de seus sermões. Ele ouvia a voz dela:
-Adoremos de coração a nossa salvadora! Se a Rã padeceu por nós, então lhe devemos a vida e temos de louvá-la até o último de nossos dias! Cantemos uma música de louvor - e começou a cantar um hino de adoração junto com toda a bicharada.
Bruno rapidamente encontrou a cela dos prisioneiros de Lira.
-Ei! Vocês dois! Estão me ouvindo?
-Quem está aí? - indagou uma fraca voz.
-Sou Bruno e você deve ser o Jodie.
-Sim. O que quer aqui?
-Eu sei que apenas vocês podem revelar o mistério desta rã. Afinal, Lira os mantêm aí trancados há anos e diz a todos que vocês são os culpados pela morte da tal rã.
-Que rã?
-A grande rã. É assim que se referem a ela. Eu preciso saber a verdade. Lira diz: "A rã padeceu por nós". O que isso significa?
A voz de Mirtes foi ouvida por Bruno:
-Jodie, então foi por causa daquela conversa! Lembra?
-Lembro.
-Quando dissemos que a rampa desceu.
-Ela torceu tudo!
-Afinal, a tal rã padeceu mesmo? - indagou Bruno.
-Não, filho. Não é rã, é rampa. Era a rampa que havia no rio que margeia a cidade. A rampa levantada num pedaço dele e que também era uma espécie de ponto turístico, porque do alto dela dava para ver um tantão da cidade. O problema foi que a rampa desceu, depois de anos umedecidos, o terreno onde ela estava construída cedeu e ela desceu. Como se diz: "Água mole em pedra dura..."
Mirtes acrescentou:
-Quem fez a rampa já era morto quando ela desceu e não havia outro que pudesse pôr a rampa no lugar daquela. Foi por isso que o Jodie disse que íamos ter que esperar outro alguém que pudesse fazer tudo de novo. E aconteceu, porém, que Lira, a cobra, escutou a nossa conversa e não entendeu do que estávamos falando. Ou entendeu e deu uma de espertinha. Não importa. O fato é que a história caminhou para um outro lado. Um lado totalmente diferente... e tortuoso!
Bruno, logicamente, correu a avisar a toda a cidade o que havia acontecido e conseguiu libertar Jodie e Mirtes.
Lira é que fora presa e ficara lá com a estátua de sua rã inventada.
Essa história, felizmente, terminou bem. Mas é apenas uma história. Se fosse real, nunca terminaria assim... A bicharada escolheria a rã, mesmo sendo uma farsa...
Priscilla Pereira Nunes (este é o meu nome, assim mesmo com a letra L repetida conforme está na certidão de nascimento; eu sou a única autora deste texto e a única responsável, portanto, por tê-lo escrito; tanto este conto quanto o conto "Entrevista com Deus" devem ser atribuídos exclusivamente a mim, ao meu gênio uraniano, ninguém mais cometeu esta obra, a Priscilla sou eu e assim inocento a todos os demais; Tchau, Crianças!)